Um poema satírico de Gregório de Matos

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Abby Sage Richardson, Public domain, via Wikimedia Commons

Gregório de Matos Guerra nasceu em 1633 (ou 1636), em Salvador, e morreu em 1696, no Recife. Grande nome da poesia barroca na América portuguesa, escreveu poesia encomiástica, religiosa, amorosa, erótico-irônica (1) e satírica — devido principalmente a este último gênero, receberá a alcunha de “Boca do Inferno”.

Viveu durante um conturbado período, marcado pela Restauração (2) e a Contrarreforma (3). A metrópole, em decadência, com a diminuição da produção de açúcar e, consequentemente, do mercado de escravos, pressionava cada vez mais a colônia.

As Câmaras coloniais se enfraqueciam, os governadores e funcionários reais se fortaleciam: surgia hostil polarização entre produtores rurais e imigrantes portugueses que dominavam o comércio. Segundo Wisnik, Gregório de Matos não somente se limita a registrar as contradições em que está embrenhado, mas também a dar-lhes resposta. Sua sátira atuará em várias frentes, que correspondem à sua perspectiva privilegiada.

Como filho de senhor de engenho, verá seu mundo usurpado pelos falsos nobres, os negociantes portugueses; como bacharel formado em Portugal, viverá a farsa das instituições jurídicas aplicadas de modo deslocado à vida da colônia; como poeta, se incomodará com o meio iletrado ou com uma poesia que realiza a apologia do status quo. (4)

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BENZE-SE O P. DE VARIAS ACÇÕES QUE OBSERVAVA NA SUA PATRIA

(Vocabulário e notas adiante.)

D’estes que campam no mundo
Sem ter engenho profundo,
E, entre gabos dos amigos,
Os vemos em papafigos
Sem tempestade, nem vento:
Anjo bento!

De quem com lettras secretas
Tudo o que alcança é por tretas,
Baculejando sem pejo,
Por matar o seu desejo,
Desde a mánhãa té á tarde:
Deus me guarde!

Do que passeia farfante,
Muito presado de amante,
Por fóra luvas, galões,
Insígnias, armas, bastões,
Por dentro pão bolorento:
Anjo bento!

D’estes beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos,
Por dentro fataes maganos,
Sendo nas caras uns Janos,
Que fazem do vicio alarde:
Deus me guarde!

Que vejamos teso andar
Quem mal sabe engatinhar,
Muito inteiro e presumido,
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:
Anjo bento!

D’estes avaros mofinos,
Que põem na meza pepinos,
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que queima e arde:
Deus me guarde!

Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão ;
E que esgrima em demasia
Quem nunca lá na Sophia
Soube pôr um argumento:
Anjo bento!

D’esse sancto emmascarado,
Que falla do meu peccado,
E se tem por Sancto Antonio,
Mas em luctas com o demonio
Se mostra sempre cobarde:
Deus me guarde!

Que atropellando a justiça,
Só com virtude postiça,
Se premeie o delinquente,
Castigando o innocente
Por um leve pensamento:
Anjo bento!

Fonte: REBELLO, Manuel Pereira (org.). ‘Obras Poeticas de Gregorio de Mattos Guerra’. Rio de Janeiro, Nacional, 1882, tomo I, p. 45 (grafia conforme esta fonte). Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/3884/1/009589_COMPLETO.pdf>. Acesso em: 14 set 2022.

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VOCABULÁRIO
(na ordem de ocorrência):

* P. = poeta.
– campar = ufanar-se; fazer ostentação.
– engenho = habilidade, talento natural.
– gabo = vaidade, jactância.
* papa-figo = grande vela redonda do mastro de ré (dicionário Aulete Digital on-line); metaforicamente, o vaidoso iça sua vistosa vela, mesmo não havendo vento.
* baculejando = “neologismo de bacular: adular, lisonjear (?)” (WISNIK, J. M. op. cit. p. 72); há também o verbo lusitano ‘bacorejar’ = fazer mexericos, intrigas (Dicionário Priberam on-line).
– pejo = vergonha, pudor.
– farfante = fanfarrão, valentão.
– galão = tira entrançada que serve para distinguir categorias militares.
– magano = patife, biltre, que tem mau caráter.
* Jano = “um dos principais deuses romanos […] era representado com duas faces (‘bifrons’), uma voltada para a frente e outra para trás, sugerindo vigilância constante ou simbolizando sua sabedoria, como conhecedor do passado e adivinho do futuro” (KURY, Mário da Gama. 8 ed. ‘Dicionário de mitologia grega e romana’. Rio de Janeiro, Zahar, 2009).
– mofino = infeliz; avarento.
– alarve = brutal, selvagem, rude.
– asneirão = muito tolo, toleirão.
* “esgrima em demasia”: esforça-se demais para formular algo trivial.
* Sofia = rua onde se localiza a Universidade de Coimbra, onde se formou Gregório.
* emascarado = o mesmo que mascarado (dicionário Aulete Digital, on-line).
(Definições deste vocabulário — exceto as indicadas com * — retiradas de: FIGUEIREDO, Candido de. ‘Novo Diccionário da Língua Portuguesa’. Porto, Livraria Clássica Editora, 1913.)

NOTAS

(1) “Erótico-irônica”: conforme explica o professor José Miguel Wisnik, a poesia amorosa de Gregório de Matos que também apresenta aspectos satíricos e burlescos, ligados à sexualidade. (WISNIK, José Miguel (org.). Prefácio In: ‘Poemas escolhidos de Gregório de Matos’. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 37.)
(2) “Restauração”: a restauração da independência de Portugal, que se seguiu à União Ibérica (1580-1640), e foi marcada por confrontos até 1668, quando da assinatura do Tratado de Lisboa (Fonte: Wikipedia).
(3) “Contrarreforma”: movimento da Igreja Católica que estabeleceu medidas como as do Concílio de Trento (1545): retomada do Tribunal do Santo Ofício, criação do ‘Index Librorum Prohibitorum’ e o incentivo à catequese dos povos do Novo Mundo, entre outras. Há controvérsia quanto ao entendimento de que foi uma resposta à Reforma Protestante (Fonte: Wikipedia).
(4) ‘Poemas escolhidos de Gregório de Matos’, op. cit., p. 19-20. O ‘Prefácio’ desta seleção de poemas, por José Miguel Wisnik, é um excelente texto para compreender a poesia de Gregório de Matos.

Fonte da imagem:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Stories_Old_English_Poetry-0179.jpg
Abby Sage Richardson, Public domain, via Wikimedia Commons.

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Kari Shea karishea, CC0, via Wikimedia Commons
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