I — UM POEMA DE DYLAN THOMAS
(Veja, logo a seguir, tradução para o português e comentário.) [1]
The hand that signed the paper [2]
The hand that signed the paper felled a city;
Five sovereign fingers taxed the breath,
Doubled the globe of dead and halved a country;
These five kings did a king to death.
The mighty hand leads to a sloping shoulder,
The finger joints are cramped with chalk;
A goose’s quill has put an end to murder
That put an end to talk.
The hand that signed the treaty bred a fever,
And famine grew, and locusts came;
Great is the hand that holds dominion over
Man by a scribbled name.
The five kings count the dead but do not soften
The crusted wound nor stroke the brow; [3]
A hand rules pity as a hand rules heaven;
Hands have no tears to flow.
– – –
“A mão que assinou o papel” [4]
O poema se assemelha a uma narrativa, segue a estrutura de uma balada, e é composto por quatro quartetos com rima alternada, ABAB. Na primeira estrofe o eu lírico declara:
The hand that signed the paper felled a city;
Five sovereign fingers taxed the breath,
Doubled the globe of dead and halved a country;
These five kings did a king to death.
“A mão que assinou o papel abateu uma cidade;
Cinco dedos soberanos taxaram a respiração,
Dobraram o orbe de mortos e dividiram um país;
Estes cinco reis levaram um rei à morte.”
Inicialmente ocorre uma sinédoque, figura de linguagem em que a parte (a mão) é tomada pelo todo (a pessoa que assinou o documento). Os cinco soberanos seguem a mesma figura, são os cinco dedos da mão.
Esta primeira estrofe apresenta um estado final de coisas: um país foi dividido pela metade, o mundo dos mortos duplicado e um rei morto pelo poder daquela mão. Até a respiração foi agora taxada, conforme o documento assinado, porque a cidade e o país foram arrasados.
Da segunda à quarta estrofe, os últimos versos têm menos sílabas que os demais. Na segunda estrofe o eu lírico declara:
The mighty hand leads to a sloping shoulder,
The finger joints are cramped with chalk;
A goose’s quill has put an end to murder
That put an end to talk.
“A mão poderosa leva a um ombro inclinado,
As articulações dos dedos estão presas pela artrite; [5]
Uma pena de ganso pôs fim ao assassinato
Isso pôs fim à conversa.”
A mão é confirmada como símbolo de poder. Entretanto, seguindo acima pelo braço, encontra-se um ombro caído; as articulações dos dedos sofrem de artrite, provocada pela gota, talvez pela bebida em excesso. Portanto, a escrita não sairá caprichada. Há um contraste entre o frágil ser humano e o poder com que, às vezes, ele está investido.
O documento assinado põe fim ao morticínio. Ele é assinado com uma pena de escrever, uma pena de ganso, evitando prolongar as negociações. A escrita com pena sugere um fato que pode ter acontecido no passado, ou que transcende o passado, um símbolo de como as coisas vêm acontecendo até hoje, a dinâmica dos tratados pós-conflitos.
Na terceira estrofe o eu lírico declara:
The hand that signed the treaty bred a fever,
And famine grew, and locusts came;
Great is the hand that holds dominion over
Man by a scribbled name.
“A mão que assinou o tratado criou uma febre,
E a fome cresceu, e gafanhotos vieram;
Grande é a mão que domina sobre
O homem por um nome rabiscado.”
Aqui a confirmação de que foi assinado um tratado pós-conflito, por uma mão cuja letra mais parece um rabisco. Mas o tratado não foi bem feito, ou não houve a intenção de que fosse bem feito; ao contrário, fez crescer a fome, trouxe praga às plantações.
Surge um tom religioso sobre o poder daquela mão e daquele rabisco. Mas o tratado não solucionará os problemas trazidos pelo conflito à vida dos homens; antes os agravará, já que os homens estão submetidos àquela mão poderosa. Como visto na primeira estrofe, até a respiração será taxada.
Na quarta estrofe o eu lírico declara:
The five kings count the dead but do not soften
The crusted wound nor stroke the brow;
A hand rules pity as a hand rules heaven;
Hands have no tears to flow.
“Os cinco reis contam os mortos, mas não aliviam
A ferida incrustada nem afagam a fronte;
Uma mão governa a piedade como outra o céu;
Mãos não têm lágrimas para derramar.”
Os cinco reis, sendo dedos, são hábeis em contar os mortos, mas não têm interesse em aliviar feridas nem de afagar frontes.
Novamente o tom religioso: a mão parece ter poder de restringir a piedade em comparação ao poder da mão que governa o céu. Teria a pessoa com aquela mão sido investida de poder divino? Ou apenas creu estar investida de poder divino? O eu lírico esclarece, por fim, que mãos “não têm lágrimas para derramar”.
O poema foi publicado em 1935, escrito em 1933. Nessa época, estava em franca ascensão o totalitarismo na Europa. [6]
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NOTAS DA PARTE I
[1] A obra em inglês de Dylan Thomas entrou em domínio público em 2024 na maioria dos países do mundo. Para países cujo prazo ‘post mortem auctoris’ é de 70 anos ou menos, a obra original de Dylan Thomas pode ser baixada gratuitamente ou lida em bibliotecas on-line, como ‘Internet Archive’, ou sites especializados, como o ‘Project Gutenberg Australia’. Há boas traduções em português, mas que não estão em domínio público; portanto não foram reproduzidas aqui.
[2] THOMAS, Dylan. ‘Collected Poems, 1934-1952’. London, Dent, 1952, p. 62. Poema publicado em 1935 na revista modernista britânica ‘New Verse’ (número 18, dezembro de 1935). Em 1936, na coletânea ‘Twenty-Five Poems’, também pela Dent.
[3] Na primeira publicação, na revista ‘New Verse’, está “pat the brow”, que foi alterado para “stroke the brow”, em versões posteriores.
[4] A tradução apresentada é apenas uma tradução do sentido, sem reproduzir rimas, ritmo e outros dispositivos poéticos presentes no texto.
[5] No original ‘chalk’, de ‘chalk-stone’ (literalmente, “pedra-giz”), cálculo gotoso nas articulações; que limita seus movimentos. Gota é uma artrite inflamatória comumente associada a beber regularmente cerveja e outras bebidas. Este era um dos males de que sofria o próprio Dylan Thomas.
[6] Fonte: <https://poemanalysis.com/dylan-thomas/the-hand-that-signed-the-paper>. Neste link, com análise de Deepti Sharma, a autora também dá mais detalhes sobre a estrutura de balada do poema.
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II — O AUTOR
Dylan Thomas (1914–1953) foi um poeta nascido no País de Gales, autor de ‘Mortes e Chegadas’, ‘Sob o Bosque Lácteo’ e ‘Retrato do Artista quando Jovem Cão’, entre outras obras. [7]
Dylan Thomas teve muitas dificuldades financeiras durante sua vida; dependeu de vários patronos, como, por exemplo, a princesa Marguerite Caetani e a esposa do historiador A. J. P. Taylor, Margaret Taylor. Esta compraria, em 1949, a ‘Boat House’, em Laugharne, no País de Gales, para ser o lar do poeta e sua família. A cerca de noventa metros da casa, Thomas comprou uma pequena garagem, que transformou em estúdio de escrita. Já nesta época se agravavam seus problemas pulmonares. [8]
Na década de 1940, aplicou seus estudos e experiências anteriores nas artes dramáticas ao trabalhar para a rádio BBC, fazendo leituras e críticas, e produzindo scripts para documentários governamentais em tempos de guerra e pós-guerra. Sua voz se tornou conhecida na Grã-Bretanha, o que o tornou praticamente uma celebridade do rádio.
Mas Dylan Thomas se tornaria mundialmente conhecido após fazer uma série de turnês em Nova York a partir de 1950, em que suas leituras e declamações eram capazes de lotar auditórios. Sua gravação original em vinil de ‘A Child’s Christmas in Wales’ (‘O Natal de uma Criança em Gales’), de 1952, se tornou muito popular nos Estados Unidos, sendo creditado posteriormente como o lançamento da indústria de audiolivros do país. [9]
Entretanto, sua má fama por bebedeiras e casos extraconjugais correu junto com tais sucessos. Faleceu muito jovem, aos 39 anos. Em sua última turnê em Nova York, em 1953, Thomas teria se gabado de beber dezoito doses de uísque em seguida. Passaria mal no hotel e entraria em coma, para nunca mais acordar. [10]
Dylan Thomas se tornou referência para a Geração Beat, para a Contracultura e para a cultura pop. [11] O trabalho intenso com o ritmo e o som das palavras [12], o tom declamatório, mas sem perder a fluência da fala natural — ou criando a ilusão de fala natural —, o uso original de palavras e comparações e a investigação em profundidade dos sentimentos são alguns traços encontrados em sua poesia.
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NOTAS DA PARTE II
[7] ‘Deaths and Entrances’ (1946), poemas; ‘Under Milk Wood’ (1954), drama radiofônico, mais tarde adaptado para teatro; ‘Portrait of the Artist as a Young Dog’ (1940), contos cômicos.
[8] Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/Dylan_Thomas>.
[9] Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/A_Child%27s_Christmas_in_Wales>.
[10] Segundo David Thomas e Simon Barton, a debilitação pela bebida não foi a causa da morte naquele evento específico. O médico particular de Thomas teria negligenciado sua pneumonia avançada e não tratada. Alegando ‘delirium tremens’, administrou-lhe doses de morfina, que teriam causado o coma irreversível. Fonte: <https://www.theguardian.com/uk/2004/nov/27/books.booksnews>.
[11] Versos de suas poesias, como “Do not go gentle into that good night” (“Não entre gentil nessa noite boa”) ou “And death shall have no dominion” (“E a morte não terá nenhum domínio”) etc. são muito citados até hoje. Há vários filmes sobre Dylan Thomas e sua obra, como, por exemplo, ‘Last Call’, de 2017 (direção de Steven Bernstein, com Rhys Ifans, John Malkovich e Rodrigo Santoro). O sobrenome artístico Dylan, adotado pelo cantor e compositor estadunidense Bob Dylan, se refere ao prenome do poeta galês.
[12] Neste link autorizado, é possível ouvir uma leitura de época, pelo próprio autor, do poema comentado no post: <https://poetryarchive.org/poem/the-hand-that-signed-the-paper>.
Fonte da imagem:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dylan_Thomas_Writing_Shed_(7896674354).jpg
wardyboy400, CC BY 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by/2.0, via Wikimedia Commons.
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